sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A Doação



Estava lá desde os tempos de seu tataravô.
Disposição para aprender a tocar nunca teve.
Agora fica aquele trambolho enorme no meio da sala a ocupar o espaço onde poderia ser colocado mais um sofá ou qualquer outra coisa que necessitasse ou agradasse.
Por isso mesmo que, ao ver aquele anuncio no jornal, não pensou duas vezes em doar o velho piano.
Não que nunca tivesse cogitado vende-lo mas, ninguém que tinha dinheiro queria pagar o que ele valia e ninguém que dava o devido valor tinha dinheiro para pagar o que ele valia.
Neste dilema Freudiano o bicho foi ficando lá, ocupando espaço e juntando poeira.
Mas, como nada nunca são somente flores, até conseguir doar o velho piano, muitos percalços tinham que ser superados.
O primeiro foi descer o bicho do terceiro andar até o térreo.
Foram necessários cinco homens, retirados do sindicato dos cachaceiros onde sairia muito mais barata a mão de obra.
Parecia que estavam transportando um caminhão em uma estrada sinuosa onde, malmente cabia um Fusca.
Foi um empurra para lá, puxa para cá, rala a mão na parede, cai no pé do bêbado, um outro se desequilibrou e rolou escada abaixo, os outros dois começaram uma briga, cantaram Reginaldo Rossi, pediram para parar e tomar uma cachaça, juraram vingança...
Mas, após quase uma hora de labuta, finalmente conseguiram descer o bendito piano, por incrível que pareça, sem nenhum arranhão.
Sem nenhum arranhão no piano, explico para quem quer entender pois, os cinco homens estavam exaustos, ralados, machucados e arrependidos.
O segundo percalço foi botar aquela enormidade na carroceria do carro de mudanças, alugado para tal fim.
Foi um puxa daqui, segura de lá, cuidado que vai cair por cima de mim, segura essa #$%#@! direito...
Enfim, após conseguirem terminar o serviço, com dó dos pobres e estropiados bêbados, ele até dobrou a dose da cachaça prometida e pagou duas cervejas.
A alegria dos bêbados foi tão grande que um deles até se ofereceu para descer a geladeira e o guarda roupas também.
Após convencer o pobre homem que não estava de mudança, tocou viagem com o motorista do carro alugado.
Foi aí que ele percebeu o que seria o terceiro percalço do dia: não havia trazido os bêbados e, o dono do carro, tendo em vista que nem se mexeu para ajudar quando colocavam o piano na carroceria, com certeza não o ajudaria estando os dois sozinhos. Pelo menos, não de graça.
Chegando finalmente ao local da doação, ofereceu um valor a mais para que o motorista o auxiliasse naquele ingrato trabalho de descer o maldito piano da carroceria do carro.
O homem, meio a contragosto e fazendo uma careta, ofereceu uma contraproposta que dava quase o triplo do valor sugerido.
Ofendido, indignado e enraivecido, mas sem outra opção, ele teve que aceitar aquilo que classificou como um “assalto a mão desarmada”.
Já se maldizendo por ter tido aquela desastrosa ideia de doar o piano e xingando mentalmente o seu pobre e inocente tataravô, ficou surpreso quando viu o cidadão pegar metade do dinheiro e dar para que alguns vagabundos da esquina fizessem o serviço por ele.
Cansado demais sequer para discutir com o folgado do motorista, só lhe restou ajudar os vagabundos a carregar o piano, ao mesmo tempo em que se sentia um perfeito idiota.
Como a porta do local da doação era meio que estreita, foi uma outra “novela mexicana” para conseguir passar o trambolho por ela.
Nem vou narrar todas as proezas que tiveram que fazer porque gastaria mais umas duas páginas aqui só para isso.
O fato é que, enquanto entravam, ele não conseguiu deixar de notar que todos os presentes os olhavam com ar de perplexidade.
Após depositarem o piano na recepção, os vagabundos exigiram um valor adicional pelo trabalho extra que tiveram e, ele aproveitou para armar uma pequena vingança contra o motorista ao dizer aos homens que, o resto do dinheiro estava no bolso do dono do carro.
Satisfeito com sua pequena travessura, dirigiu-se até o recepcionista e comunicou a decisão de doar o velho piano àquela instituição.
O funcionário, num misto de surpresa e riso, respondeu que eles não aceitavam aquele tipo de doação.
Indignado o dono do piano pegou o jornal e, já aos gritos como convém para quem passou por tudo que ele passou,  mostrou ao recepcionista.
- Aqui está escrito bem claro o nome da instituição, o endereço e a indicação de que aceitam esse tipo de doação.
Incrédulo, o recepcionista perguntou onde exatamente ele tinha visto esta informação que, como já havia avisado, não seria aceita ali.
- Está bem aqui – falou apontando com o dedo trêmulo – doe órgãos! E o que é um piano deste tamanho senão um órgão?
Às gargalhadas, compartilhadas por todos os presentes, o funcionário explicou tim tim por tim tim, que se tratava de órgãos do corpo humano e não instrumentos musicais.
Desolado, exausto, abatido e choroso, o homem sentou-se com a cabeça entre as mãos, pensando em todo o trabalho e todos os gastos que tinha tido até ali e ficou imaginando como faria para levar o piano de volta, sem os bêbados, sem os vagabundos e, depois de sua pequena travessura, sem o motorista. Num rompante de loucura, saiu correndo dali e lá mesmo largou o piano para que, quem quisesse que desse seu jeito.
Meses depois soube que a instituição tinha vendido o piano para um shopping da cidade, por uma quantia considerável e lucrado um bom bocado. O homem, atualmente está movendo um processo contra a instituição para tentar conseguir, ao menos, uma parcela do dinheiro arrecadado afinal, se tratava de uma herança de seu querido tataravô.

PS – Crônicas a parte, doar é um ato de amor ao próximo. Doe órgãos, doe sangue, doe medula, doe agasalhos, doe roupas, doe comida, doe água, doe dinheiro... doe o que puder doar pois, sempre terá alguém precisando desesperadamente do que você não precisa mais.

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