sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Memórias de um Cartão



Ódio eu tenho mesmo é do cartão!
Aliás, acho que todos temos ódio de algum cartão. 
Tia Catarina odeia o cartão de crédito que, nunca consegue pagar e vive acumulando juros. 
O primo Juvenal, conectado em tecnologia, odeia os cartões de memória que, além de terem menos memória que o avô Tadeu, invariavelmente dão problemas e apagam tudo que foi armazenado. 
A vizinha Clotilde tinha pavor ao cartão de ponto da empresa onde trabalhava que, sempre entregava seus constantes atrasos e, consequentemente, dava problemas financeiros. 
Mas o meu ódio não é direcionado nem ao já quase extinto cartão de ponto (que nunca me causou problema pois, não sou de me atrasar), nem aos quase finados cartões de memória pois, coloco todos os meus arquivos em nuvem, e muito menos com os cartões de crédito porque, estes, me irritam e ajudam na mesma proporção. 
Meu ódio, rancor e desprezo é total e unicamente direcionado aos malditos e, Graças a Deus, já inexistentes cartões da censura!
Aos mais jovens, cabe uma explicação:
Para quem não costuma acompanhar minhas contações de causos, preciso informar que nasci nos anos setenta e já passei da casa dos quarenta anos. 
Dito isso, informo também que tive o desprazer de passar a infância e o começo da adolescência ainda com o país sobre o controle da ditadura. 
E é justamente daí que vem todo meu ódio. 
Naquela época, os filmes levavam em torno de dois anos entre a exibição no cinema e passar nas Telas Quentes da vida, trazendo assim, uma grande expectativa quando anunciados. 
Já as séries passavam uma vez por semana, sem a menor preocupação com sequência ou cronologia. 
Mas, o que mais me incomodava era o fato de passarem sempre por volta de nove e meia, e sempre após a novela das oito que, na época, começava as oito e meia pontualmente. 
Eu via, com os olhos brilhando de emoção, as chamadas anunciando as super produções de Hollywood, juntamente com as datas de exibição. 
Era Exterminador do Futuro, De Volta Para o Futuro (deixando claro para minha mente de criança que o futuro não seria exterminado), Guerra nas Estrelas (que não se chamava Star Wars), Alien, O Oitavo Passageiro e algumas obras que não se tornaram clássicos. 
Eu planejava assistir todos mas, por causa de um maldito cartão, eu nunca assistia nenhum!
Dadas as devidas explicações, agora vou esclarecer o motivo de tanto ódio por esse maldito cartão. 
Nas noites de exibição dos esperados filmes, eu ficava quietinho sentado no meu canto e torcendo para ser esquecido por minha mãe. 
Tomava banho cedo e jantava igualmente cedo justamente para que minha presença ali na sala não fosse notada. 
Começava a novela das seis, e eu quietinho. 
Passava pela novela das sete, pelo jornal local, pelo Jornal Nacional (sim, já existia naquela época) apresentado pelo imortal Cid Moreira e pela já citada novela das oito. E eu quietinho. 
Quando terminava Roque Santeiro ou a atração da vez do SBT, eu me aproximava silenciosamente, “de fininho” e sentava num cantinho, com um olho na tv e outro em minha mãe. 
Passava uma daquelas propagandas bonitas do cigarro Hollywood onde, pessoas brancas e bonitas (não existiam as cotas ainda) andavam de Jet-ski ao som de Miles Way do Van Hallen , depois uma de creme dental onde pessoas brancas e bonitas mergulhavam em piscinas, continuava com o anúncio de alguma atração dos próximos dias e finalizava com alguma propaganda da Coca Cola, cheia de gente branca, bonita e feliz. 
Aí vinha o momento decisivo da noite: antes da vinheta da sessão de filmes da vez, meu coração acelerava pois era o momento em que o famigerado, maldito, odiável, abominável e detestável cartão da censura surgia , em preto e branco, preenchendo toda a tela de nossa TV Colorado, feita em vidro e madeira e, juntamente com ele, a voz cavernosa de um locutor que reafirmava em alto e bom som, o que eu já havia lido na tela:
“Este programa não é recomendado para menores de dez anos”. 
Eu me encolhia ainda mais em meu canto e rezava para continuar sem ser notado. Toda semana era assim e toda semana o resultado era o mesmo. 
Assim, do nada, minha mãe parecia ouvir minha respiração, lembrava que eu estava na sala, me olhava e sentenciava:
- Você ouviu o homem da televisão: hora de dormir. 
E não adiantava fazer cara de choro, demorar de levantar ou contar com o apoio do meu pai: se o homem da TV e o cartão da censura diziam que o filme não era para criança com menos de dez anos, então era hora de eu dormir e ponto final!
Aquilo se repetia toda semana e, por tabela, meu ódio por aquele maldito cartão da censura só fazia aumentar. 
Pensem que eu nem tinha noção do que era uma ditadura ou do mal que ela fazia e já odiava uma de suas obras. 
Teve uma noite porém, que fui dormir na casa de minha tia e, quando o detestável cartão apareceu na tela da TV, como que respeitando uma tradição, me retirei da sala e fui dormir. 
Meu tio, só para me provocar, disse que eu só tinha ido para o quarto porque estava com medo do filme de terror que iria passar aquela noite. 
Com o orgulho de mini-macho ferido, voltei para a sala e, com a promessa que minha mãe não reclamaria no dia seguinte passei a, pela primeira vez na vida, assistir um filme naquele horário. 
Pense num arrependimento!
Durante o filme, em uma das cenas mais tenebrosas, uma janela bateu repentinamente e me fez, pelo menos por alguns instantes, me arrepender de não ter obedecido ao agourento cartão da censura. 
Mas foi só por alguns instantes mesmo. 
Hoje, adulto e maduro, mudei de opinião sobre um monte de coisas e superei o medo de voltar a assistir Poltergeist, com muito orgulho. 
Mas ainda odeio aquele maldito cartão da censura!
Tia Catarina diz que é besteira de minha parte, enquanto xinga a fatura do mês, como se isso fosse adiantar de alguma coisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Felicitações

A primeira mensagem chegou antes das sete da manhã.  - Felicidades, minha amiga! Que dure para sempre! Como a Almerinda sempre foi meio desc...