quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Não Lembro


Alemão nem era de mentir. 
Sujeito íntegro, trabalhador e honrado. 
Alemão só tinha um problema: um caso, raro e desconhecido pela ciência e pela medicina, de amnésia conveniente para dividas. 
Tinha dívida que ele lembrava e outras que ele esquecia. 
As que lembrava eram as que as pessoas o deviam. 
As que esquecia eram as que ele devia. 
Alemão era capaz de lembrar, e cobrar, um chiclete que tinha emprestado a Tinoco quando ambos tinham cinco anos de idade e, em contrapartida, esquecer cem reais que tinha tomado na mão do mesmo Tinoco, há quinze minutos atrás. 
Reza a lenda que a Universidade de Oxford, a de Harvard e até mesmo a própria NASA tentaram decifrar esta raríssima doença que acometia o pobre Alemão, sem alcançar nenhum sucesso. 
Carambola não era tão boa pessoa assim. 
Mulherengo, caloteiro e cachaceiro. 
Carambola tinha a mesma doença de Alemão. 
Reza a lenda que, quando vivos, Albert Einstein e Freud tentaram compreender o problema de Carambola, em vão. 
“Tudo é relativo, menos a doença de Carambola” – teria dito Einstein. 
E Freud, concordando, sentenciou:
“ Freud tudo explica, menos o Carambola.”
Ocorre que estes dois mistérios inexplicáveis da natureza se conheciam. 
E, após dez longos anos, se encontraram na rua. 
- Grande, Carambola! Aproveitando este raro encontro, vamos ali tomar uma cerveja! Você paga para que possamos descontar aqueles vinte reais que te emprestei no dia cinco de outubro de noventa e seis – falou Alemão, já aproveitando para cobrar o outro. 
- Sabe que não lembro disso? Mas você pode descontar dos trinta e cinco reais que te emprestei em treze de agosto de noventa e dois. O troco você paga a cerveja – respondeu de bate-pronto, Carambola, já sentando. 
- Lembro desse dia não mas, podemos abater do dia dois de abril de oitenta e oito, onde te salvei com dezessete reais no mercado do Lindolfo, quando você tinha esquecido a carteira em casa. Então você me deve dois reais. Pode pegar de mortadela para acompanhar a cerveja. 
- Rapaz, sem recordação nenhuma desse dia, sabe? Mas já que você falou em dois reais, lembro de ter pago sua passagem de ônibus em janeiro de oitenta e quatro, quando você gastou todo seu dinheiro no réveillon. Pela cotação de hoje dá uns quatro reais. Então, você paga a mortadela. 
- Por falar em perder a carteira, me recordo quando você foi assaltado em agosto de oitenta e dois e eu paguei um táxi para sua pessoa ir para casa. Não lembro dessa passagem de ônibus mas, a do táxi tenho certeza que foram exatos quarenta e dois reais. Então temos quarenta reais para beber de cerveja hoje. 
- Acho que nunca entrei em um táxi na vida mas, se você diz, eu acredito. Podemos descontar daquele jantar que fomos com a Genoveva e a Lurdinha em novembro de oitenta, lembra? Duas beldades! Na hora de pagar a conta você descobriu que eles não aceitavam seu cheque porque já tinham dois sem fundos. Lembro que a conta deu cento e vinte reais. Bons tempos (mas você me deve oitenta reais).
- Lembro da Genoveva e da Lurdinha... Coisas lindas! Não me recordo dessa história de cheque sem fundo... Nem lembro de já ter tido talão de cheques... Mas me recordo de ter usado meu cartão de crédito para pagar o presente de dia dos namorados de setenta e oito, que você deu a Lurdinha. Até olhei a fatura semana passada. Está lá. Pensei cá comigo mesmo:” olha, o Carambola esqueceu de me pagar os cento e trinta reais”. 
- Memória é uma coisa, não é Alemão? Não lembro de nenhum cartão de crédito mas, esses dez reais de saldo você pode descontar do refrigerante que tomamos no cinema, ainda adolescentes, em um frio junho de setenta e seis. Acho que hoje em dia, um refrigerante em cinema dá uns dez reais, não é mesmo?
- Eita que a idade bateu! Porque não lembro de nada disso. Sei de um pirulito, em março de sessenta e cinco, que te paguei na escola de Pró Mirinha. Saudosa dona Miramar da cantina... Saudades dela e do dinheiro do pirulito. Mas você não lembra, né? Tanto tempo se passou. Não está se lembrando dos débitos mais recentes...
- Não gostei da insinuação vinda de um amigo de longa data que, inclusive, fez minha mãe comprar uma chupeta nova para mim em outubro de sessenta porque pegou a minha e sua genitora nunca pagou. 
Aí, como todos com certeza devem saber, quando coloca a mãe na história acabam-se as cortesias, o cinismo e a amizade. 
Novas dividas e subsequentes calotes vieram à tona com valores e datas bem detalhadas. Sempre um lembrando o débito do outro e esquecendo do próprio, como era de costume devido à rara enfermidade que acometia os dois pobres homens. 
Quando chegou a um ponto em que, Alemão lembrou uma dívida que o avô de Carambola havia contraído com sua tia-avó, a coisa esquentou de vez: era caloteiro pra lá, vagabundo pra cá...
Algumas pessoas foram atraídas pela confusão e, entre elas, um tal de Jesuíno Mula-Manca, conhecido agiota da cidade. 
- Aproveitando a boa memória demonstrada pelos dois cavalheiros, vim aqui para receber as quantias que os dois me devem. 
Ambos juraram de pés juntos, sobre a Bíblia e fazendo o sinal da cruz que, não lembravam de tal débito. Com certeza, mais uma vez devido à rara doença que ambos possuíam que, de tão rara, nem mesmo nome tinha. 
- Mas, diferente deste safado do Carambola – gritou Alemão – eu honro meus compromissos, mesmo não lembrando deles. Vou ali pagar a minha parte na conta do bar e volto para irmos ao 24 Horas quitar este valor! Porque sou honrado e detesto ficar devendo a quem quer que seja!
- Já eu que sou verdadeiramente leal aos meus compromissos – gritou ainda mais alto, Carambola - inclusive aos que não me recordo, irei pagar a minha parte na conta do bar e já volto para irmos em minha casa pegar o dinheiro. Porque diferente do sem-vergonha do Alemão, eu honro meu nome e não fico devendo a ninguém. 
E, trocando empurrões e xingamentos, os dois entraram no bar. 
Jesuíno Mula-Manca sentou e esperou. 
Cinco, dez, vinte, quarenta minutos...
Desconfiado que tinha tomado um nó, chamou o garçom. 
- Os brigões? Eles foram embora pela saída dos fundos tem uns quarenta minutos – informou Deodoro Mão de Moça, o garçom. 
- Ah, mais vou atrás daqueles safados agora!
- Não antes de pagar a conta, né?
- Que conta? Não bebi e nem comi nada!
- Os dois senhores que estavam nesta mesa em sua companhia, informaram que sua autarquia iria pagar todo o consumo porque devia um dinheiro a eles. 
- Mas eu não devo a eles! São eles que me devem!
- Por favor, senhor. Se não pagou àqueles dois homens, ao menos tenha vergonha e pague o que prometeu a eles que iria pagar. O senhor não sabe que ninguém gosta de caloteiros?

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