quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A Laje


Quando dizem que dinheiro não traz felicidade, muita gente discorda. 
Então, hoje vou provar que, em alguns casos, esta é uma verdade mais verdadeira que promessa de político. 
Você que já nasceu classe média alta ou rico, nunca vai conhecer por exemplo, os prazeres de bater uma laje!
Pense que as lajes são a segunda festa preferida do brasileiro pobre e a terceira do nordestino. No Brasil, para o pobre, só perde para o carnaval e, para o nordestino, só é superada pela folia de Momo e pelo São João. 
Sendo que, dá para bater laje em um dos dias da folia e também na festa junina, desde que os amigos se encontrem em condições. 
Os prazeres de uma boa laje até podem variar mas, no geral, seguem um roteiro bem tradicional:
Uma semana antes, o dono da laje reúne o pedreiro e ajudante para “montar a laje” durante o dia, enquanto vai até o bar avisar às pessoas do evento que está por vir. 
As pessoas, por sua vez, já estão de olho na construção desde o alicerce, aguardando o tão esperado convite. 
Na noite anterior, que sempre é um sábado pois, laje que se respeita é batida aos domingos, todos se reúnem em um bar para “acertar os detalhes” que, todo mundo já sabe quais são. 
Afinal, laje é uma tradição que passa de pai para filho. 
E, se o filho é um playboyzinho que não sabe “virar concreto”, ajuda carregando os baldes. Se é um daqueles frescos que não querem se sujar, vira vergonha, decepção e ovelha negra da família. 
O ritual de passagem que, nos filmes é caçar algum animal feroz, nestes casos é bater sua primeira laje. 
A bebedeira vai até a alta madrugada e só não dura mais porque laje é responsabilidade e faltar é desfeita grave e falta de consideração. 
Existem duas famílias que brigaram em 1937 porque um bebeu demais e faltou a laje do outro e, são inimigas até hoje. 
Às quatro da manhã, os primeiros voluntários já estão esperando na frente da casa que irá receber a laje. 
Quatro e meia os pedreiros chegam e, após ouvirem as reclamações pelo atraso, já começam a, literalmente, botar a mão na massa. 
O “traço” de concreto começa e, a partir daí, ninguém na rua pode dormir. 
Nem a polícia se atrever a impedir o início dessa sagrada tradição. 
Garrafas térmicas cheias de café, biscoitos e litros de água, em embalagens reutilizadas de refrigerante, são trazidas. 
Alguém arrasta uma pá no chão, de forma a fazer muito barulho e, se a rua for asfaltada, sair faíscas, como sinal de que a laje começou a ser batida. O som das pás no concreto e o ruído das conversas animam o evento. Logo, vão chegando mais voluntários e, quando o dia começa a clarear, todos já estão trabalhando. 
O pedreiro dita as orientações de cima da casa e sempre tem um peão que, achando entender mais que ele, começa uma discussão. 
Ninguém briga. A discussão é tradição e, laje é festa e não violência. 
Pedreiros, carpinteiros, encanadores, comerciantes, advogados, estudantes, desempregados e até malandros participam do evento. 
As mulheres se reúnem na cozinha e, aproveitando para colocar o papo em dia, trocam receitas, fofocam e falam mal dos maridos, cuidam do almoço. É importante que o feijão, porque em laje não se come lasanha, peixe ou bife e sim, feijão, esteja gostoso, seja em grande quantidade e cheire bastante. Cheiro de feijão de laje tem que ser sentido até no bairro vizinho. Ele é o incentivo dos trabalhadores. E tem que ter muita carne!
Arroz até tem mas, ninguém liga muito. 
À essa altura, o café já acabou e as garrafas de água já foram trocadas. A boa e velha cachaça pura já tomou seu lugar. 
Mas é regra beber pouco para não prejudicar a laje. Lajes são obras de arte que precisam de cuidado e atenção. 
As pessoas se revezam entre preparar concreto, carregar os baldes, seja de massa ou de água, e resenhar. O sol castiga mas o trabalho não para. 
A resenha também não. Atualiza-se as fofocas, fala-se mal de quem não está presente, do bavi de mais tarde, das coxas da filha de Tonho, de economia, política, filmes, relembra-se lajes antigas e memoráveis...
Alguém arranja um som, pedreiros dançam com as pás e os carros de mão e, as primeiras cervejas começam a surgir. 
A essa altura, todas as pessoas da rua se aproximaram e, como um mini-carnaval, todos dançam, conversam e confraternizam. 
- Mês que vem é a minha laje! Estão todos convidados – alguém avisa. 
Laje quase pronta, alguns meio bêbados e a alegria contagia a todos. 
O cheiro forte e gostoso do feijão, juntamente com o sol cada vez mais forte, lembram que é necessário se apressar pois, a laje jamais se resume à própria laje: ainda tem muito mais pela frente. 
Quando o serviço termina, o feijão é servido e regado à cerveja. 
Um satisfeito dono da casa trás várias “caixas de cerveja”, bebidas em copos descartáveis como manda a tradição. O feijão é servido em pratos tradicionais, tanto do dono da casa quanto emprestados pelos vizinhos. 
Um pequeno tumulto acontece quando, Ezequiel aparece com a “cara inchada de dormir” e quer comer e beber sem ter ajudado em nada. 
Aí ele se oferece para pagar algumas cervejas pra compensar e é carregado em delírio pelos peões. Mas, ainda assim, não participa antes que alguém o suje de cimento, como manda a tradição. 
Quando a cerveja do dono da laje acaba, alguém passa o chapéu para arrecadar dinheiro e comprar mais. Alguns vão em casa tomar banho e voltam. O som toca um samba ou um pagode. Pessoas dançam, cantam e se paqueram. Casamentos começam em lajes. 
Dá quatro da tarde e, quem não quer ouvir música e nem dançar, vai para a sala de um vizinho que , a essa altura já virou um anexo da festa, e assiste ao futebol. Dez da noite, ainda tem gente bebendo e comentando sobre esta e sobre a próxima laje.
Os mais próximos ficam mais um pouco para tomar a “saideira” e, junto com o anfitrião, comemorar o sucesso da laje. 
Meia-noite, já bêbado, o dono da laje se despede do último convidado. 
A felicidade é tão grande que, apesar do cansaço, até a noite com a esposa é mais quente e satisfatória. 
- Aí João, se eu pudesse tinha laje todo dia – comenta a sorridente e satisfeita esposa. 
Pois é, meu amigo! Você que paga empresas para bater sua laje e não quer se sujar de cimento, não faz ideia do que é uma laje entre amigos. 
E tudo isso acontece para que o dono da laje possa economizar dinheiro!
Porque seu dinheiro pode até pagar sua laje mas, nunca vai te trazer essa felicidade.

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