quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A Possuída


Meu nome é Severiano. 
E antes que você comece a rir, vou logo dizendo que vim aqui contar um causo sério que aconteceu na maternidade, semana passada. 
Consta que a Miquelina, minha estimada companheira na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, como diz o padre, estava já no nono mês de gravidez e, somente à espera do Rodolfinho, nosso primeiro herdeiro. 
Herdeiro da pobreza, diga-se de passagem porque, a parte da riqueza ficou lá com o padre e o pessoal do buffet no dia do casamento. 
Pense num troço caro é casar!
Mas, voltando a história, todos os nove meses transcorreram na mais perfeita paz de Deus, graças ao Senhor, em sua Divina Providência. 
As sacolas já estavam arrumadas, o compadre Birosca, que era o único conhecido que tinha carro, já estava de sobreaviso e a “meladinha” já estava pronta e engarrafada para a comemoração. 
Era só a bolsa romper que já estava tudo pronto, arrumado e dentro dos conformes. Até a tal da respiração de cachorrinho que a doutora Camila ensinou, Miquelina já estava pra lá de ensaiada. 
A longa espera e a grande ansiedade duraram até o dia treze de agosto que, segundo diz o povo, é o Dia do Desgosto e, para completar, era uma sexta feira. Rodolfinho resolveu dar as caras nesse mundão em uma sexta feira, treze de agosto! Para mim, já foi um mau presságio. 
Neste referido dia, pontualmente às seis e meia da manhã, estava eu tirando o último cochilo que a gente tira antes de ir trabalhar (aquele dos dez minutos da soneca do despertador, sabe?), quando ouvi um grito que gelou até a alma de minha alma:
- Homiiiiiiii de Deus! A bolsa estourou!
Atordoado pelo sono, fiquei por uma fração de segundos me perguntando se precisava de tanto escândalo só por causa daquela bolsa velha que compramos nos anos noventa lá na Avenida Sete. 
Na fração de segundo seguinte, sentindo algo úmido na cama e achando muito esquisito, perguntei:
- Muié, tú fez xixi nas calças?
Miquelina, com toda delicadeza que sempre foi sua marca registrada, acertou um tabefe em meu peito, cujo barulho deve ter acordado toda a vizinhança e tornou a gritar:
- Homiiiiiiii, larga de ser lesado que a bolsa estourou!
Dizem que o que não se aprende com amor, se aprende pela dor e, com a dor daquele tabefe, não só acordei como, magicamente, entendi perfeitamente tudo que estava acontecendo. 
Saltei por cima de Miquelina e já caí de pé, fora da cama, arrumado e com a bolsa na mão. Corri e chamei o compadre Birosca que, aparentemente, pulou da cama e se arrumou ainda mais rápido que eu. 
Entrei no carro e, super nervoso, gritei:
- Pisa no acelerador, compadre!
Birosca me olhou espantado e eu, agoniado que estava, só percebi o motivo quando minha doce Miquelina, aos berros, me falou:
- Homiiiiiiii, seu desmiolado do cão, eu ainda tô do lado de fora do carro!
Já com a grávida dentro do veículo, tocamos para a maternidade numa velocidade que deixaria o saudoso Ayrton Senna boquiaberto. 
Lá chegando, saí gritando histérico para os funcionários:
- Acode, que a mulher tá vazando!
Colocaram minha delicada Miquelina numa maca, enquanto ela gritava, de forma amorosa, para o maqueiro:
- Essa p* dói muito! Tira logo! Tira logo! Severianooooooo, a culpa é sua!
Passaram cinco minutos, segundo o Birosca mas, para mim, tinham passado umas dez horas, quando um funcionário da maternidade saiu e chamou meu nome:
- Severino Alvarenga!
- Sou eu!
- Pode entrar para assistir o parto. 
Entrei cambaleando, quase ao ponto de pedir para me levarem em uma cadeira de rodas, e finalmente cheguei até a sala do parto. 
Miquelina se retorcia e eu, gentilmente como vi nos filmes, me aproximei e segurei sua delicada mão. 
Foi aí que tudo piorou de vez. 
Miquelina cravou as unhas em minha mão e eu, valente que sou, tasquei um grito tão alto que acordou todos os recém nascidos que estavam na maternidade. Era eu gritando de um lado, a mulher berrando do outro e todos os bebês chorando ao mesmo tempo. Um inferno generalizado. 
Mas o pior mesmo foi quando olhei para a Miquelina. 
Os olhos da mulher estavam revirados, tipo a menina do filme Exorcista, os dentes cerrados, os cabelos arrepiados e ela bufava pelas narinas, como se estivesse possuída por algum espírito maligno. 
- Doutor, chama um padre que essa mulher já já revira o pescoço!
Miquelina cravou ainda mais as unhas em minha mão e, para completar, fazia um ruído estranho, que saia por entre os dentes:
- Rrrrrrrrrrrrrrrr!
De repente, a criatura agarrou a gola de minha camisa, me puxou para perto dela e falou:
- Rrrrrrrrrrr, tira logo essa criança, senão eu te mato!
Aterrorizado, pedi ao doutor que agilizasse o processo e a Deus que, após o parto, tirasse aquele encosto que tinha se apoderado de minha mulher. 
- Rrrrrrrrrrrrrr – gritava Miquelina. 
- Ueeeeeé – choravam os bebês. 
- Uaaaaaaaaaaaaiiiii – berrava eu. 
- Força! – falava o médico. 
De repente, Rodolfinho começou a sair. 
- Olha seu nenê está nascendo – disse feliz e aliviado o médico. 
Eu olhei, sorri e tudo escureceu. 
Acordei, sei lá quanto tempo depois, na enfermaria. 
Após passar a bebedeira, sem ter bebido, causada pelo medicamento que devem ter me dado, fui conduzido para ver pela primeira vez o mais novo membro da família Alvarenga. 
Lá chegando, estava Rodolfinho nos braços de Miquelina. 
Percebi que minha delicada esposa, religiosa que só ela, terminava com o nenê nos braços, uma oração. 
Pude ouvir apenas o final, que dizia:
- Que não seja frouxo igual ao pai, amém

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