quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Lugar Trocado


Entrei no ônibus, meio sonolento, e sentei na poltrona trinta e seis. 
Viagem longa tinha pela frente e pretendia que fosse o mais tranquila, relaxante e preguiçosa possível. Reclinei a cadeira e fechei os olhos. 
O cochilo porém, não durou nem cinco minutos. 
- Senhor – falou alguém, batendo em meu ombro. 
Abri um dos olhos, para economizar o outro, e vi um senhor alto e gordo me olhando com cara de contrariado. 
- Sim – respondi, mais com um resmungo que com uma palavra. 
- Desculpe, mas o senhor está em meu lugar. 
Tirei preguiçosamente a passagem do bolso, olhei o número da poltrona, estiquei um pouco o pescoço para o lado e conferi: trinta e seis na passagem e trinta e seis na poltrona. 
- Estou não – respondi com mais preguiça ainda. 
- Sim, o senhor está – respondeu, ainda mais contrariado. 
- Acabei de conferir minha passagem – respondi quase dormindo – e estou na cadeira certa. O senhor deve ter se enganado. 
- Que coincidência! Porque estou com a minha passagem aqui no bolso e nela tem escrito: poltrona trinta e seis. 
- Então sugiro que o senhor procure o guichê e pergunte o porque de terem te vendido uma passagem igual a minha. Quando resolver, não precisa vir me contar, porque estarei dormindo – finalizei fechando o olho que ainda estava aberto. 
- Tenho uma ideia melhor: o senhor levanta de meu lugar e vai procurar porque te venderam uma passagem igual a minha e, quando resolver, não precisa voltar aqui pra me dizer porque não quero saber. 
Abri o outro olho e respondi calmamente:
- Como eu cheguei primeiro e já estou sentado, deixo essa tarefa para o senhor – respondi com uma preguiçosa ironia. 
Nisso a discussão do homem contrariado com o sujeito preguiçoso foi se arrastando e chamando atenção de todos dentro do ônibus. 
Até que o despachante, também atraído pelo barulho, resolveu intervir. 
- Bom dia. O que está acontecendo aqui?
- Este sujeito confuso – respondi sem abrir os olhos – está dizendo que sua passagem é desta poltrona mas, a minha diz o mesmo e eu cheguei primeiro portanto, não vou levantar. 
- Na verdade – respondeu o homem impaciente – este cidadão preguiçoso está sentado em meu lugar e se recusa a levantar. Comprei a passagem antecipada portanto, não interessa se ele chegou primeiro, já que eu comprei antes. 
Antes que o despachante pudesse dizer qualquer coisa, um rapaz jovem, alto e risonho se aproximou falando:
- Bom dia! Vocês podem dar licença? Quero sentar em minha poltrona trinta e seis porque a viagem é longa e estou cansado. 
- Só pode estar de sacanagem – gritou o homem impaciente. 
- Deve ser alguma pegadinha – respondi abrindo o olho direito. 
- Não tem pegadinha – falou o rapaz sorridente – mas tenho uma passagem comprovando que esse senhor está bastante relaxado e sonolento sentado em meu lugar. 
- Seu lugar é no céu ou no inferno, quando morrer! Está poltrona é minha – respondeu irritado, o homem impaciente. 
Enquanto o despachante, o rapaz sorridente e o homem impaciente discutiam, fechei os olhos e tentei cochilar. 
Despertei com todos gritando. O despachante coçava a cabeça e resmungava que iria matar a moça do guichê de vendas de passagem, o rapaz sorridente não mais sorria e, o homem impaciente agora era um homem furioso. Já os outros passageiros reclamavam do atraso e alguns ameaçavam colocar todos para fora do ônibus. 
Foi quando, alguém teve uma excelente idéia: conferir com cuidado as três passagens. 
O despachante pegou as três e as analisou vagarosamente e com muito cuidado. Mesmo estando de óculos, apertou os olhos e, logo depois soltou uma exclamação aliviada:
- Aham!
- Aham? Aham o que? – perguntou o homem impaciente, agora mais impaciente que antes. 
- Descobri o que aconteceu – respondeu triunfante o despachante. 
- Espera – gritou um dos passageiros – vamos fazer um bolão de cinco reais pra ver quem acerta qual vai ficar sentado?
Arranjaram caneta, papel e um chapéu para guardar o dinheiro arrecadado. Foi impressionante como o som da frase “ cinco reais de cada” fez as pessoas esquecerem do atraso que reclamavam a poucos minutos atrás. 
Quanto a mim, permaneci sentado e só abri um olho para depositar meus cinco reais no chapéu e apostar em mim mesmo. 
Sob protestos do motorista, o despachante teve que esperar todo o dinheiro do bolão ser arrecado e conferido para que pudesse dar uma definição sobre tão embaraçosa e inusitada situação. 
- Treze votos para o preguiçoso que já está sentado, treze para o magrelo, treze para o estressado e um dizendo que ninguém vai ficar sentado. 
Feito e dito isso, deram a palavra ao despachante. 
- Bom – falou sentando no braço de uma cadeira e juntando as pontas dos dedos, igualzinho ao Sherlock Holmes – todos os três se preocuparam em olhar o número da poltrona mas, ninguém se preocupou em ler o resto da passagem. Dando uma lida rápida, percebi que, a passagem do “magrelo” realmente é a trinta e seis...
- Eu sabia – interrompeu triunfante o rapaz. 
- ... do ônibus que saiu meia hora antes – e devolveu para o abismado jovem, que não estava mais sorridente. 
- Já a passagem do senhor “estressado” realmente é a trinta e seis deste horário. Isto está correto. 
- Então, por favor, peça para este cidadão levantar do meu lugar – rosnou com toda sua impaciência, mais no auge que nunca. 
- O horário está correto, mas o destino não. Está passagem é para outra cidade. O senhor errou de ônibus – explicou o despachante, para vergonha do homem impaciente e fazendo com que eu não abrisse um olho e sim, um largo sorriso. 
Já fazia as contas de quanto iria ganhar do bolão, enquanto os passageiros que tinham votado em mim comemoravam como se a Seleção Brasileira de Futebol tivesse acabado de ganhar uma Copa do Mundo. 
O despachante pedia silêncio e, quando finalmente foi ouvido, terminou com a festa.
- Só que o lugar também não é do “preguiçoso”. A passagem dele é para o próximo ônibus. Sendo assim, eu ganhei o bolão porque apostei que nenhum deles iria sentar afinal, o verdadeiro dono da poltrona nem aqui está. Não veio, não apareceu e faltou. 
Enquanto os passageiros gritavam que era marmelada porque ele já sabia antes de apostar, o magrelo ex-sorridente e o homem cada vez mais impaciente discutiam, o motorista reclamava que estava atrasado e o despachante contava o dinheiro, eu voltei a fechar os olhos. 
Sou gordo, peso cento e cinquenta quilos e não estou com nem um pouco de pressa, quero ver quem vai me levantar daqui.

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