quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O Clássico dos Clássicos


Quem nasceu antes dos anos noventa, vai saber exatamente do que irei falar e, quem nasceu depois, infelizmente nunca vai saber como é. 
Antes das cidades crescerem ao ponto de cada palmo de chão ser disputado a peso de ouro e, antes da violência e da tecnologia trancarem as crianças dentro de suas casas e de seus mundos, existiram os campinhos de futebol. 
Cada terreno baldio e cada rua, eram um campinho em potencial. 
Já joguei em campo com uma árvore no meio, em outro em que a bola sempre caia em um rio, joguei numa ladeira, na lama, no barro, na terra, com trave de madeira, com dois blocos de construção ou duas sandálias servindo como balizas, com bola de couro, de borracha, saco plástico, garrafa de alvejante e até a mochila do colega novato na sala de aula, usando as cadeiras como traves. 
Eram destes campos que saiam futuros craques, pernas de pau, grandes amizades e muitas brigas, olhos roxos e dedões ralados. 
E, foi de um desses campinhos que veio a história de hoje. 
Era dia do maior clássico do bairro! Rivalidade a flor da pele e seis litros de refrigerante em disputa!
FlaFlu? Pequeno; GreNal? Fichinha; BaVi? Nem chegava perto; Real Madrid e Barcelona? Sem graça; A maior rivalidade do planeta estava em jogo naquele dia quente e ensolarado: Rua de Cima x Rua de Baixo!
No campo de barro, pontualmente às quinze horas, os dois maiores e melhores esquadrões do bairro iriam medir forças. 
O time da Rua de Cima vinha escalado com:
1 – Cacau (goleiro); 3 – Seco (zagueiro); 5 - Binho (volante); 10 - Tubarão (meia-atacante); 11 - Bicudo (ponta); 9 - Zé (centroavante).
Numa rápida análise, Cacau só estava no gol porque não podiam ter dois “mais velhos” na linha, Seco era o único que topava jogar na zaga, Binho era ruim de bola e dava para encaixar em qualquer lugar que a ruindade seria a mesma, Bicudo era o mais velho que estava jogando na linha e, por isso jogava onde queria, e Zé, que não sei se era só pra ter um Zé (porque toda partida que se prezava, tinha que ter um Zé) ou se era porque ele fazia alguns gols. 
Desenho tático? Esquema de jogo? Treinador? Ninguém nem sabia para que serviam essas coisas. 
Já a Rua de Baixo, tinha a seguinte formação:
1- Claudio Rato (goleiro); 3- Lota (zagueiro); 10 – Germiano (meia); 7 – Piru ( atacante); 10 – Beto (atacante); 9- Toicinho (atacante). 
Com uma formação mais ofensiva e um time mais experiente (Claudio Rato e Toicinho eram os mais velhos, já Lota era o menor mas todo mundo sabia que, já era quase adulto, apesar de ninguém ter coragem de falar), a Rua de Baixo era favorita e havia vencido os últimos três confrontos. 
Também não tinha desenho tático, esquema de jogo e nem treinador. 
A partida seria realizada no campo da Rua de Cima porque na Rua de Baixo não tinha campo e teria que ser na rua mesmo porém, como o clássico era marcado pelas suas jogadas mais duras, alguém poderia cair sobre um meio fio e ficar aleijado. Era o que diziam as regras e regras tem que ser cumpridas afinal, é do Clássico dos Clássicos que estamos falando!
Conforme combinado, seriam dois tempos de vinte minutos e a saída de bola foi definida em par ou ímpar, com Bicudo e Toicinho, um de costas para o outro. A Rua de Cima ganhou e escolheu o lado do campo para que, no segundo tempo não precisassem descer o barranco para pegar as bolas chutadas, já estando cansados. Sendo assim, a saída de bola ficou com o time da Rua de Baixo, conforme as regras. 
Germiano tocou para Beto, que serviu Toicinho, este chutou forte e fez um a zero para a Rua de Cima!
A comemoração teve direito a xingar a mãe do goleiro, gritar e chamar todo o time da Rua de Baixo para “sair na mão”. 
Ânimos acalmados, a peleja recomeçou. 
Seco tocou para Tubarão, que passou para Bicudo, que pulando de um “carrinho” no seu joelho, deixou para Binho, que perdeu para Piru. 
Piru tocou para Germiano, que driblou Tubarão e chutou forte para a defesa de Cacau. No rebote, Piru chegou chutando e fez dois a zero para a Rua de Baixo. Ao som de um, dois, três/ a Rua de Cima é freguês e de araruta, araruta/do outro lado só tem filho da fruta, o time da Rua de Baixo permanecia soberano na partida. 
No fim do primeiro tempo, já chutavam a bola Canarinho em direção a ladeira, para ganhar tempo. 
Seu Toninho Esquerda, que Deus o tenha, responsável por marcar o tempo gritava:
“Corre pra pegar a bola porque eu não vou parar o cronômetro!”
No finzinho da primeira etapa, Lota escorregou e a bola sobrou para Bicudo, este passou para Zé completar: gol da Rua de Cima. 
Na última jogada da etapa inicial, Lota irritado pelo erro que cometeu, deu uma “voadora” no estômago de Seco que, furioso, partiu para briga. 
Os mais velhos separaram a confusão e, assim terminou o primeiro tempo. Pausa de dez segundos para trocar o lado do campo e a partida reiniciou, tão quente quanto tinha terminado. 
Pancada pra lá, pancada pra cá, bola chutada para longe, discussão e tudo mais que um clássico daquele tamanho exigia. 
Faltando dois minutos para terminar a partida, Bicudo tocou para Tubarão, que driblou Lota e chutou colocado, vencendo o goleiro Claudio Rato. Era o empate da Rua de Cima, dois a dois!
No minuto seguinte, Beto tentou chutar a bola para longe, acertou as costas de Zé (que caiu estatalado e sem ar) e voltou, enganando Claudio Rato... Era a virada da Rua de Cima! Três a dois!
Claudio Rato, que era o único não-violento da Rua de Baixo, se aproximou de Seco e avisou:
- Se vocês ganharem, eles vão partir pra porrada...
Rapidamente, Seco combinou com os outros a tática para o último minuto e, na saída de bola de Beto, Binho chutou a redonda em direção a ladeira. 
Neste momento de distração da Rua de Baixo, os menores da Rua de Cima desandaram a correr para suas casas enquanto, um tanto atrasados, os atletas adversários os perseguiram com cabos de vassouras, tirados sabe-se lá de onde. 
Aos gritos de “pega”, “arrebenta” e coisas do tipo, a partida foi encerrada ao som das risadas dos mais velhos que, nunca brigavam entre si. 
O resultado da partida foi três a dois para a Rua de Cima mas, até hoje a Rua de Baixo reivindica a vitória. 
Afinal, eles sabiam que até podiam ter perdido no campo, mas não perderiam na porrada. 
E assim terminou aquele que viria a ser o último Clássico dos Clássicos, entre a Rua de Baixo versus a Rua de Cima. 
Não por causa das ameaças de pancadaria, pois isso era normal e sim, porque uma imobiliária adquiriu o terreno e construiu várias casas no lugar do campinho. 
A vida é assim: as coisas param de acontecer e nunca sabemos que aquele será o último dia delas.

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