quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O Craque


Zelito se considera um craque de futebol. 
Anota em um caderno todos os gols que já marcou em sua longa carreira de jogador de várzea. 
Segundo suas anotações, setecentos e noventa e nove gols já haviam sido marcados, somente pelo seu pé direito. O esquerdo, que não é lá muito bom, marcou mais cem. 
Os amigos, claramente com inveja de tão expressiva marca, afirmam que Zelito com os dois pés, não chegou a cinquenta gols marcados. 
Polêmicas a parte, Zelito tinha certeza que, naquele domingo, dia sete de Abril, marcaria o gol novecentos de sua carreira. 
E, para ficar tudo redondinho, tinha que ser de pé direito. 
O adversário era o temível Leão do Norte Esporte Clube. 
Nunca entendi porque “Esporte Clube” já que, não praticava outra modalidade além do futebol e nem possuíam um clube social: era um amontado de marmanjos que se reuniam fins de semana para jogar bola e encher a cara. Talvez daí tenha vindo o “Leão do Norte”, nome de uma conhecida marca de cachaça. 
Bom, voltando à histórica partida, os grandes obstáculos para o feito inédito de Zelito eram os zagueiros Paulão Alicate e Carlão Machadada, além do goleiro Juca Braço de Borracha. 
O árbitro João Passamão apitou e deu início a partida mais importante da história do campo Pinicão de Seu Ramos, pelo menos na opinião de Zelito. 
Nos primeiros quinze minutos o Leão do Norte sufocou o bravo Tatupitu Futebol Clube, equipe de Zelito. 
Sendo assim, nosso intrépido atacante não teve nenhuma chance de realizar sua tão esperada proeza. 
Porém, nos trinta minutos restantes do primeiro tempo...nada mudou. 
O árbitro encerrou a primeira etapa com o poderoso Leão do Norte vencendo o bravo Tatupitu por dois a zero, gols de Marquinho Chutecerto. 
No intervalo, Zelito fez um discurso inflamado sobre nunca desistir, lutar sempre e coisas do tipo. Citou o Sócrates filósofo, o Sócrates jogador, Getúlio Vargas, Paulo Coelho, falou que as viagens para a lua eram impossíveis até alguém, que não desistiu, tornar possível, e finalizou comparando Neil Armstrong a Romário. 
Com lágrimas nos olhos e riso irônico dos colegas, puxou uma salva de palmas e, foi o primeiro a voltar para o segundo tempo. 
Segundo tempo este que transcorreu igual ao primeiro: o Leão do Norte atacava e o Tatupitu se defendia. 
Incomodado com a situação e temeroso de não fazer o gol número novecentos de sua carreira, Zelito gritava, corria, ajudava a defesa, brigava com o árbitro, reclamava...
Aos trinta minutos, já estava quatro a zero para o Leão do Norte. 
Foi aí que Tadeu Usain Bolt, rápido meia do Tatupitu, roubou uma bola e entrou na área adversária e sofreu o pênalti. 
Zelito ajoelhou agradecendo a Deus pela oportunidade. 
Porém, o (outro) astro do time, Décio Maradona, pegou a bola para cobrar a penalidade máxima. 
Zelito armou uma confusão: chamou o colega de invejoso e insensível, apelou para o juiz, o técnico e o presidente do time. 
Compadecidos pelo desespero de Zelito, os torcedores começaram a pressionar gritando o nome de nosso dedicado craque. 
Curiosamente, era a torcida adversária que mostrava mais empenho em pedir para que Zelito batesse o pênalti. 
E, como a voz do povo é a voz de Deus, acabaram por ceder e deixar Zelito tentar o seu gol número novecentos através da cobrança do pênalti. 
Zelito respirou fundo quatro vezes, tomou distância, esperou o apito do árbitro, correu, bateu e...
Seria gol talvez no futebol americano onde, o objetivo é fazer a bola passar por cima do gol. O chute fez com a pelota saísse do Pinicão e quase derrubasse Nicanor, que assistia a partida sentado em seu telhado. 
Zelito não conseguia acreditar no que aconteceu. 
Mas, de cabeça erguida continuou a partida com a mesma disposição. 
O jogo transcorreu sem mais nenhuma novidade até que, aos quarenta e dois minutos, enquanto aguardava a cobrança de um escanteio a favor, Zelito foi chamado pelo treinador para ser substituído. 
Como um Neymar da várzea, o craque de quase novecentos gols se recusou a deixar o campo antes da cobrança do tiro de corner. 
Após muita discussão e um cartão amarelo, Zelito conseguiu ficar em campo, pelo menos até que o escanteio fosse cobrado. 
Fabio Firula fez a cobrança e Téo Beija Flor, exímio cabeceador mandou para o gol. A bola passou pelo goleiro mas, Paulão Alicate conseguiu rebater para o meio da área onde o predestinado Zelito apenas empurrou para o fundo do gol. 
Zelito correu, chorou, se ajoelhou, fez coraçãozinho com as mãos, mandou recado para a mãe por uma câmera inexistente e fez helicóptero com a camisa. Era muita felicidade. 
E assim a partida terminou, com Zelito sendo substituído no final e dando volta olímpica, trajando uma camisa com os seguintes dizeres:
“ Pelé é dez mas, Zelito é novecentos”. 
Em entrevista à Rádio Pinicão, o serviço de auto falantes do estádio, Zelito enalteceu seu próprio espírito de luta, agradeceu à “imensa” torcida, falou da compreensão do técnico e comentou orgulhoso sobre seu feito. 
- Agradeço primeiramente a Deus e segundamente aos meus companheiros por me ajudarem a alcançar esta marca histórica. Agora é descansar e trabalhar para alcançar a marca de mil gols e igualar o feito de Pelé e Romário. 
Zelito levou a bola do jogo para casa, botou a camisa da partida em uma moldura, e nem se importou com os comentários do dia seguinte que diziam que ele tinha comemorado como um louco, o gol de número cinquenta. O que o chateou mesmo foi a manchete do “Na Cara do Gol”, prestigiado site esportivo da cidade:
“ Uma vergonhosa goleada dos Leões sobre a frágil equipe do Tatupitu, marcada pela patética comemoração de um obscuro e roliço atacante que, mesmo perdendo de forma vexatória, comemorou um inexpressivo gol como se estivesse ganhando um título.”
Com a recusa do Tatupitu de processar o site, Zelito já planeja usar seu décimo terceiro salário para pagar um advogado e fazer o Na Cara do Gol se retratar e reconhecer seu feito histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Felicitações

A primeira mensagem chegou antes das sete da manhã.  - Felicidades, minha amiga! Que dure para sempre! Como a Almerinda sempre foi meio desc...