sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O Dente de Alho



A moça do caixa olhou indignada para o rapaz. 
- Isso é sério?
- Não entendi sua pergunta – respondeu com ar de estranheza o cliente. 
- O senhor quer que eu registre um dente de alho?
- Isso mesmo. 
Indiferente aos risinhos e cochichos da fila, ele se manteve firme em sua, no mínimo inusitada, intenção. 
- Senhor, nós não vendemos um dente de alho...
- E porque não?
- Porque só vendemos, no mínimo, a cabeça inteira. 
- Mas eu só preciso de um dente.
- Mas um dente não vende!
- Onde tem escrito isso?
- Em lugar nenhum, mas...
- Se não tem escrito, como você pode recusar a venda?
- Isso está subtendido, senhor. 
- Pois eu não subtendi nada. 
- Senhor – argumentou pacientemente a moça do caixa – também não está escrito em nenhum lugar que vende...
- Então vamos falar de coisas subtendidas: ali diz que o preço é por quilo, correto?
- Sim, senhor. 
- Então, se não diz que vende por cabeça e sim por quilo, eu posso comprar a quantidade que eu quiser, certo?
- Não é bem assim...
- É sim! Se é por peso, você pesa o dente de alho e divide o preço do quilo pela quantidade de gramas do dente. Se quiser, eu tenho uma calculadora aqui comigo...
- Eu não posso fazer isso, senhor...
E, como é de costume nestas ocasiões, as pessoas na fila começaram a se agitar e reclamar da demora. 
- Dá logo essa porcaria de dente de alho para o cara – gritou um. 
- Larga de casquinhagem e compra uma cabeça – gritou outro. 
Logo, o barulho e a confusão atraíram a atenção do gerente 
- O que está acontecendo aqui?
- Esse senhor insiste em só querer comprar um único dente de alho – informou, já impaciente, a moça do caixa. 
- Coisa que é um direito meu como consumidor – rebateu o rapaz. 
- Mas, senhor – falou em tom amável, o gerente – nós não trabalhamos com esta modalidade de vendas. 
- Vocês vendem a peso e eu só preciso de um dente então, basta vocês pesarem o dente de alho, me dizer o valor, eu pago, vou embora e problema resolvido. 
A fila, cada vez mais agitada, se dividia entre dar razão ao rapaz, dizer que o mercado tinha regras, e reclamar da demora. 
Temendo por um tumulto maior, o gerente resolveu:
- Então o senhor leva o dente de alho grátis, como cortesia pelo aborrecimento e estamos resolvidos. 
- De jeito nenhum! – falou indignado o rapaz – Vocês estão pensando o que? Que eu vou sair daqui e ser revistado pelos seguranças e até ser preso porque não paguei pelo dente de alho? Sou burro não!
Nisso, a discussão foi se acalorando, as pessoas da fila se agitando e nada se resolvia. Era um “levo”, “não leva” interminável. 
Até que, em um momento de irritação extrema, o rapaz gritou:
- Quer saber? Eu não vou mais levar essa porcaria de dente de alho! Passe o resto das compras e eu nunca mais entro neste mercado!
Entre palmas, assobios e gritos de “Graças a Deus” e “finalmente”, a moça do caixa começou a registrar as compras da cestinha do rapaz. 
- São quarenta e sete reais e noventa e quatro centavos. 
O rapaz entregou uma nota de cinquenta a moça do caixa e, após receber o troco, permaneceu de pé com a mão estendida. 
- Algum problema senhor? – perguntou aflito o gerente. 
- Claro que sim! Falta um centavo do meu troco!
Sem dizer uma única palavra, a moça do caixa entregou mais uma moeda de cinco centavos ao rapaz. 
- Não, não! O troco é seis centavos e não dez. Depois vão dizer que saí lucrando as custas do mercado!
- Senhor – falou revirando os olhos o gerente – não existem mais moedas de um centavo circulando no país...
- Pensassem nisso antes de colocar preços fracionados nos produtos. 
Novo impasse e mais tumulto na fila. 
- O senhor então aceita uma bala no lugar da moeda de um centavo?
- Sou diabético e não posso consumir doces...
A discussão parecia que nunca ia terminar até que, do final da fila, surgiu um homem para resolver a situação.
- O senhor quer seu um centavo, certo?
- Certíssimo. 
- E a senhora não tem moedas de um centavo porque não circulam mais, correto?
- Correto. 
- O senhor aceitaria a bala, se não fosse diabético?
- Aceitaria – respondeu o rapaz, pensativo. 
- Então dá a porcaria do dente de alho de troco e acaba com essa agonia, antes que eu prenda todo mundo, porque sou delegado de polícia e já estou de saco cheio de vocês. 
Após tão boa ideia e tão delicada forma de pedir, o gerente concordou com a solução, o rapaz aceitou, a moça do caixa respirou aliviada, a fila aplaudiu e o delegado foi ovacionado como herói do dia e futuro candidato a vereador.

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