sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Pou Pou Pou



Hoje em dia moro em um bairro tranquilo.
O único incômodo que tenho são com vizinhos barulhentos e suas músicas horrorosas mas, nem sempre foi assim.
Houve uma época em que a marginalidade tocava o terror e vivíamos tão assustados que, qualquer estouro de bomba, fazia com que corrêssemos como desesperados.
Consta que em certo dia, estava eu com meus onze anos de idade, lá enfiado no meio dos “coroas” a observar suas animadas partidas de dominó, que como se sabe, é o esporte mais popular entre a faixa de idade que não consegue mais jogar futebol.
Entre os “paf-paf” das pedras sendo batidas na mesa, as brigas entre os parceiros que perdiam as partidas e a gabolice dos vencedores, muitas cervejas e pingas eram tomadas e resenhas eram contadas.
Porém, como falei anteriormente, era uma época onde a marginalidade aterrorizava o bairro e qualquer barulho era motivo de alerta.
Eis que, entre um “paf” e outro, ouvimos vindo de longe, vários estouros.
A roda de dominó silenciou-se pela primeira vez em décadas e logo alguém gritou:
- Valha-me Deus! Isso é tiro!
A parte menos corajosa da turma, tal qual um cachorro em dia de caça, ficou de orelhas em pé, atentas a tão tenebroso som.
Apenas meu pai permanecia impassível e concentrado no jogo.
- Vocês vão jogar ou não? – perguntou impaciente.
O jogo continuou e os jogadores e espectadores que não correram para casa, até esqueceram do acontecido.
Mas eis que, passados alguns minutos, ouvimos novamente aqueles mesmos estampidos:
Pou, pou, pou!
E para piorar, pareciam estar mais próximos, o que voltou a assustar todos os presentes. Todos menos meu pai.
- Passei – falou, continuando o jogo.
O problema é que, desta vez, o barulho não parou e parecia estar cada vez mais próximo.
- Só pode ser tiro – gritou alguém.
- Pela quantidade é um tiroteio, com certeza – falou outro.
- Melhor encerrarmos o jogo e irmos para casa – choramingou outro.
- Nada disso – insistia meu pai – estou com uma mão ótima para ganhar essa partida e só saio daqui quando terminar.
Confesso que eu já estava com lágrimas nos olhos, temeroso pela troca de tiros que se aproximava e pela teimosia de meu pai que insistia em ignorar o que estava acontecendo.
Nisso chegou o fofoqueiro da rua já aos berros:
- Vocês não estão sabendo? Tem um monte de ladrões fazendo um “arrastão” e vindo para o lado de cá!
Foi o bastante para espalhar ainda mais o terror e fazer com que todos os jogadores e espectadores pegassem seus banquinhos e corressem para suas casas.
Menos meu pai.
Tentei argumentar e colocar um pouco de juízo em sua cabeça mas, o velho permanecia irredutível.
- A depender do que o outro jogue agora, dou um “lasquinê” preso.
- E os tiros? – perguntei aflito.
- Isso não é tiro não – respondeu sem tirar os olhos do jogo.
Fui arrastado para dentro de casa pela minha mãe que, infelizmente, não possuía força para fazer o mesmo com meu teimoso pai.
Eis que a rua ficou deserta. 
Ou quase pois, ele insistia em não se levantar.
E o “pou-pou-pou” cada vez se aproximava mais.
E minha aflição só fazia aumentar.
Até chegar o momento em que o barulho dos tiros estava tão alto que tive a certeza que os ladrões já estavam em minha rua.
Corri para o muro e, cautelosamente, coloquei os olhos para observar como ficaria meu pai naquela situação.
Pude ver que, atrás de cada cerca, de cada porta e de cada muro, os vizinhos também estavam a observar.
E meu pai? Continuava sentado a estudar o jogo.
Foram momentos de pura tensão até que, finalmente, o tiroteio passou pela rua e pudemos saber do que se tratava: aquele barulho, aquele pou-pou-pou nada mais era que o escapamento furado de um Fusca velho que, só Deus sabe como, ainda conseguia sequer sair do lugar.
Após o carro passar, todos voltaram a sair e riram bastante do acontecido e de toda aquela confusão causado pelo velho carro.
Foi quando meu velho pai, contrariado, resolveu falar:
- Agora que ninguém morreu, vocês podem sentar de novo? Só estou esperando você jogar o duque de quadra para eu poder bater e vocês tornarem a levantar.
Eu não sabia se ria, se acalmava meu coração ou se ajudava minha mãe a xingar o doido do meu pai.

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