sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Supermercado


“Querida professora,
Como eu já sabia que a senhora iria me pedir uma redação contando como foram minhas férias e, como com essa pandemia não fomos a lugar nenhum, fiquei aqui matutando o que é que eu iria escrever quando voltasse às aulas. 
O único lugar que fui com meus pais e minha irmã durante todo esse tempo foi ao supermercado então, não tem outra coisa para contar das férias, além disso. 
E, como todo mês a confusão é igual, vou falar hoje sobre as compras que fizemos no mercado essa última vez. 
O problema já começa em casa: a mamãe faz uma lista do que vai comprar e entrega para o papai, que sempre a perde. 
Aí, antes de sair, os dois brigam.
Mamãe diz que papai é lerdo e papai fala que mamãe é um “pé no saco”. 
Eu nunca entendi muito bem isso porque, só vejo mamãe com o pé nas Havaianas velhas dela ou, quando vai na igreja ou no mercado, calçada numa sandalinha rosa que, era vermelha quando ela comprou. 
Saco eu só vejo ela botando na cabeça quando molha o cabelo. 
Enfim, doidice de adultos. 
A gente sempre vai de ônibus e volta de Uber. 
Papai diz que não precisa gastar esse dinheiro e que tem que economizar. 
Mamãe diz que ele é um “mão de vaca”. Outra coisa que não entendo: desde quando vaca tem mão e, se tivesse, o que isso tem a ver com ônibus e Uber? Adulto é estranho...
Só agora lembrei que a senhora também é adulta, professora. 
Não vou poder apagar porque escrevi de caneta, mas não tire ponto meu por causa disso não, viu? 
Quando a gente chega no mercado, meus pais botam Mariquita, a caçulinha, no carrinho e eu, que sou mais velho, vou andando mesmo. 
Como papai perdeu a lista, a gente tem que ir de seção em seção para não esquecer nada e isso me deixa muito cansado. 
Primeiro a gente passa numa seção cheia de garrafas. Acho que tem alguma coisa a ver com posto de gasolina porque, meu pai sempre tenta levar um troço chamado uísque e, quando minha mãe fala que é muito caro, ele responde que trabalha muito e precisa de combustível. 
Mas, desconfio que é por isso que a gente sempre vem de ônibus: papai deve ter um carro escondido que vive sem combustível pois, mamãe nunca deixa ele levar o tal do uísque. 
A gente pega suco de garrafa e um monte de pacotinhos que, eu desconfio que papai não gosta, porque ele sempre reclama:
- Esse “mancha pulmão” vai é fazer mal às crianças...
Eles sempre brigam na seção do macarrão também. 
Papai pega miojo e mamãe reclama. 
- O “mancha pulmão” você diz que faz mal as crianças mas, essa bomba você quer levar um monte!
Eu tenho muito medo de abrir o armário e os pacotes de miojo explodirem. E, no dia que explodir, vai ser complicado porque papai sempre pega uns dez pacotes. 
Papai é muito brincalhão quando estamos na seção de coisas de mulher. 
Mamãe bota esmalte, água oxigenada, algodão, creme e shampoo no carrinho e, quando ela se distrai, ele tira tudo. 
Quando papai percebe que eu vi, pisca o olho e faz aquele sinal com o dedo na boca, para eu ficar calado. Acho muito engraçada essa brincadeira porque, quando chega em casa, mamãe fica procurando e não acha. Aí ela fica lendo o papel que a moça do caixa deu e diz que no mês seguinte vai reclamar mas, nunca reclama. 
A única coisa que eles dois concordam no mercado e fazem juntos é reclamar que tá tudo com o preço mais alto. 
Pra mim, todo mês os preços estão colados na mesma altura mas, adulto é esquisito... Menos você, viu professora?
A parte ruim é quando vamos comprar os lanches. 
Todo mês eles compram uns biscoitos ruins que, nem eu e nem a Mariquita gostamos. Eu queria também iogurte de chocolate mas, só compram de morango. 
Papai diz que biscoito é tudo igual e não vai pagar os olhos da cara só por causa da marca. Eu não entendo porque tudo é pago com dinheiro e só os biscoitos gostosos precisam ser pago com os olhos. 
Mas, como não quero que papai fique cego, não reclamo. 
O iogurte, mamãe diz que é mais saudável o de morango e que, no tempo dela, nem iogurte tomavam. 
Eu acho que, no tempo de mamãe, nem iogurte existia porque ela já é bem velhinha. Deve ser por isso que ela só tomava leite. 
Na seção de frios, eles brigam porque mamãe diz que quer levar mortadela e papai quer presunto. 
Mamãe diz que é tudo a mesma coisa e papai fala que “depois o mão de vaca é ele”. Eu não acho que seja a mesma coisa, porque se fosse, não precisava ter dois nomes né?
Eu sempre aproveito a briga deles e boto um pacotinho de queijo no carrinho e, quando Mariquita percebe, eu pisco o olho e faço o sinal com o dedo na boca pra ela ficar calada. 
É engraçado porque, quando chega em casa mamãe diz que foi papai, papai diz que foi mamãe e um chama o outro de doido. 
Eu sou engraçado igual a papai. 
Quando vamos pagar as compras, papai fala pra gente rezar para o santo protetor dos cartões de pobre. 
Mamãe chama ele de palhaço e a gente ri muito. 
Mas, eu já vi mamãe rezando enquanto papai passava o cartão na maquininha e agradecendo a Deus quando aprova o pagamento. 
Mamãe não vai muito a igreja mas, é muito religiosa no mercado. 
Adulto é esquisito. 
Então, vou terminando aqui essa redação sobre minhas férias porque a mamãe tá me chamando para merendar. Toda vez que ela e papai terminam de brigar e arrumar as compras nos armários e na geladeira, a paz volta a reinar em casa. 
Aí papai abre uma cerveja, mamãe vai pintar as unhas com os esmaltes que papai não tirou do carrinho, Mariquita toma mamadeira e eu como biscoito de leite molhado no iogurte de morango. 
Eu acho dia de ir ao mercado divertido. 
Meus pais brigam, dizem coisas estranhas e depois volta tudo ao normal. 
Mas eu já me acostumei e acho que a senhora, professora, deve ter dias divertidos assim no mercado também. 
Porque adulto e tudo esquisito.

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