quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Uipitipiti


Pense em coisas desagradáveis. 
Segunda feira pela manhã, feijão frio, dor de cabeça, cunhado folgado, torcedor chato, carro de mensagens, a cara do Presidente, a voz de Joelma, Tpm, ressaca, intelectual de Facebook...
Mas, nada supera a combinação de um som irritante com sua repetição. 
Pessoas roncando, barulho de mastigação, arrocha...
E foi essa parte relacionada às músicas que me fez lembrar de um causo que eu não presenciei mas posso jurar no tribunal, com a mão sobre a Bíblia, que realmente aconteceu. 
Ronivaldo nasceu no Ceará e, como bom nordestino daquela época, se acostumou com o bom e velho baião de Luiz Gonzaga e outros tons de nossa querida Música Popular Brasileira. 
Aconteceu que a família de Ronivaldo se mudou para a Bahia, terra onde se ouve de tudo. A playlist do baiano pula de Jota Quest para Chiclete com Banana, passando por Pablo, Anita, Mangueira, ópera e o que mais aparecer, sempre com o maior volume possível. 
É, porém, mas, todavia, a família de Ronivaldo foi se aventurar em uma cidade que ainda não era cidade e, como toda futura cidade que ainda é uma cidade bebê, tinha pouquíssimos habitantes. 
Na rua onde o senhor Ronivaldo pai e a senhora Ronivalda mãe resolveram residir, por exemplo, tinham apenas três casas: a da família Ronivaldo, uma que ainda estava vazia, e a de Zeca Zaroio. 
Isso foi lá pras bandas dos anos oitenta. Então, se você já passou dos quarenta, vai lembrar e, você que tem menos vai saber que, nessa época, não existia internet, YouTube, Spotify ou coisas do tipo. 
Música era na base da radiola, daquelas que quando fechava, virava uma simpática malinha. Antes que os coroas de plantão comecem com a nostalgia e a choradeira, me deixem continuar com a história. 
Essas radiolas, por si só, não tinham potencia para fazer muito barulho mas, quando ligadas a uma caixa de som, faziam inveja a qualquer trio elétrico. Porém, o som saia alto e distorcido. Tipo o que acontece com o som do vizinho barulhento que você deve ter aí do lado: mais ronco que música. Isso por sí só já é uma coisa irritante e desagradável mas, no caso de Zeca Zaroio, conseguia ser pior. 
Além de ligar sua radiola à uma caixa de som maior que a casa, Zeca só possuía um único disco. E Zaroio gostava muito do seu disco. 
E foi daí que nasceu o trauma de Ronivaldo. 
Zeca Zaroio acordava às cinco e meia da manhã e botava seu único disco, que só tinha uma música de um lado e a mesma música do outro lado, no volume máximo que a caixa rouca conseguia chegar. 
Então, pontualmente às cinco e meia, antes do galo cantar, Ronivaldo acordava com um ensurdecedor e odioso grito:
Uipitipiti!!!!!!
No primeiro dia, ele caiu da cama com o susto, seu irmão pequeno chorou assustado, sua mãe gritou “valha-me Deus Senhor” e o pai correu para a rua com a faca de cozinha na mão, atordoado pelo sono e sem saber o que estava acontecendo. 
Nos dias, semanas, meses e anos restantes, o ritual se repetiu. 
O galo já não cantava o tradicional cocoricó e sim um agourento uipitipiti; a família não precisava mais de despertador, as primeiras palavras do irmão recém nascido, ao invés de “papai” ou “mamãe”, foi uipitipiti; o cachorro da família latia uipitipiti e Ronivaldo tinha pesadelos com uma invasão extraterrestre de uipitipitipianos, tentando conquistar a Terra armados com radiolas e caixas de som. 
O tempo passou, a cidade cresceu e Zeca Zaroio foi morar em outro lugar mas, o trauma de Ronivaldo nunca sumiu. 
Ronivaldo, como todo adolescente da época, tentou ser jogador de futebol mas não conseguiu. Durante uma partida, a torcida começou a cantar uma música para embalar o time, que tinha a seguinte letra:
“Uipitipiti, é Guarani! Uipitipiti é Guarani!”
Ronivaldo sentou no chão e começou a chorar. E, alí acabou sua carreira. 
O pobre rapaz não ia a festas porque tocava uipitipiti. 
Não pegava trem porque o barulho do apito lhe lembrava o uipitipiti. 
Navio? Também fazia uipitipiti. 
E assim cresceu Ronivaldo: traumatizado e sonhando com um mundo melhor onde ninguém ouvisse uipitipiti. 
O tempo passou e as pessoas acabaram esquecendo do uipitipiti, para a felicidade de Ronivaldo. 
A vida finalmente voltou ao normal. 
Não ia mais ao psicólogo, frequentava festas e até casou e teve filhos.
Já pelos idos do ano de dois mil e dezoito, Ronivaldo foi com a família em uma destas festas e lá conheceu um rapaz chamado Luis. 
Pessoa agradável era o Luís. Conversaram bastante e descobriram que, além de terem a mesma idade, ambos já tinham morado naquela mesma cidade de infância. 
Já pro meio da festa, Luís meio alcoolizado e após falar com o DJ, pediu o microfone e resolveu fazer uma homenagem ao seu novo amigo. 
- Eu gostaria de homenagear este meu novo amigo, com uma música que meu pai adorava e tenho certeza que ele conhece e também gosta! Toca aí o que a gente combinou DJ! 
E o DJ soltou a música:
Uipitipiti!!!!!
- Uma homenagem de Luis Lambadeiro, filho de Zeca Zaroio, para o amigo Ronivaldo – gritou Luis, minutos antes de Ronivaldo, em um surto psicótico, quebrar toda a aparelhagem de som nas costas do pobre Luis Lambadeiro. 
Dois dias depois, Luis saiu do hospital e Ronivaldo voltou ao psicólogo.

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