A morte sempre é uma coisa muito triste. E, quando quem morre é uma pessoa tão boa e querida quanto o compadre Gumercindo, este acontecimento irremediável se torna ainda mais triste.
Por isso estou aqui, a aproximadamente cinquenta minutos, escolhendo com que roupa eu irei para o velório.
Antes que me acusem de ser vaidoso, devo informar para todos aqueles que querem saber, e também para os que não querem, que aqui em minha cidade, velório é coisa séria e acontecimento social importante.
Não existem formaturas, casamentos ou bailes de quinze anos que sejam mais importantes, badalados e disputados que um velório.
Não importa se é de uma pessoa pública ou de um Zé Ninguém, velórios são os acontecimentos mais importantes de qualquer sociedade interiorana.
Dito isto, e espero que tenha ficado claro, separei aqui meu terno preto e meu terno marrom que, além de serem os únicos que possuo, são as roupas mais elegantes que disponho. Optei pelo preto que é mais elegante e combina mais com o momento de luto, a calça social de igual cor, meu velho cinto de couro legítimo e meu sapato social “bico fino” que passei a tarde lustrando. Na saída, peguei também meu melhor guarda-chuva porque a noite parecia que seria de chuva.
Coloquei uma bela flor na lapela, ajeitei meu cabelo em frente ao espelho e, finalmente saí de casa para prestar esta última homenagem ao pobre e velho amigo Gumercindo.
Chegando lá, analisei todo o ambiente que foi montado para a despedida de meu compadre e fiquei muito satisfeito com o que vi.
O caixão estava em cima de uma mesa no centro da sala, muitas flores em volta e os sofás foram arrastados de forma que não ficassem muito próximos e nem muito distantes do que se tinha de mais importante em um velório que se respeita: a mesa onde ficam depositadas as garrafas térmicas com café, o pote com os biscoitos de côco (que aqui a gente chama de “poca-zóios) e as tulipas com a mais pura pinga da região.
Claro que eu, como uma pessoa distinta e educada, cumpri todos os protocolos que se cumpre em uma ocasião de velório: cumprimentei a viúva, fiz o sinal da cruz em frente ao caixão, comentei como o defunto tinha sido uma boa pessoa em vida, contei uma história engraçada que aconteceu entre nós dois e, finalmente fui ao que realmente era importante em uma destas ocasiões, como era sabido por todos.
Me dirigi até a mesa, tomei um cafezinho e me servi de uns “poca-zói.
Primo Zelezinho se aproximou de mim e comentou:
- Primo Tobias estava pedindo para colocarem leite no café dele. Vê se pode uma coisa dessas? Esses frescos da cidade grande... Onde já se viu botar leite em café de velório?
Realmente revoltante uma atitude dessas! Só podia partir de um desses fuinhas de cidade grande. Enquanto me servia de um pouco da pinga, comentei este absurdo mas, primo Zelezinho foi logo esclarecendo:
- Mas primo Perivaldo baixou logo a bola dele. Chamou no canto e mandou ele se comportar feito homem, que velório não é lugar para chibungagem de gente da capital. Tem que respeitar as tradições que o defunto, quando era vivo, também respeitou.
Tomei outra talagada da cachaça e, pegando mais um pouco de poca-zóio, me dirigi aos fundos da casa onde estava acontecendo já, o tradicional dominó, regado a cachaça. A regra era simples: perdeu bebeu.
Fiz parceria com primo Neneca (sim, no interior todo mundo é primo de alguma forma, seja de primeiro, segundo ou trigésimo quinto grau) e, até começamos ganhando mas, depois perdemos seis seguidas e, com a cachaça já subindo ao juízo, ele me acusou de ser o lado fraco da parceria e a causa das nossas derrotas. Começamos uma discussão, que só não chegou às vias de fato porque, os outros primos apartaram e nos lembraram de respeitar a pobre, chorosa e sentimental viúva.
- Se querem brigar, briguem do lado de fora.
Em respeito a esposa do pobre Gumercindo e, lembrando que estava com minha melhor roupa, desisti da briga, mas troquei de parceiro.
Jogamos, bebemos e conversamos até o outro dia as dez da manhã, quando seria realizado o enterro. Enterro este que não presenciei. Não por sentimentalismo mas, porque acordei as três da tarde, na maior ressaca.
Meu terno preto caríssimo, até hoje não sei onde foi parar, mas desconfio que o primo Neneca, só de vingança, deu um fim nele.
Jurei nunca mais beber em velórios, mas no mês seguinte, teve o do primo Capistrano e aí sabe como é, né?
Tradição é tradição e tem que ser respeitada.
Fui de terno marrom mesmo e, só de pirraça, depois do dominó joguei o terno chique de Neneca no açude, depois de ter tomado umas oito doses de cachaça.
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